terça-feira, 27 de novembro de 2007

Música para revolução


Por Marcelo Salles


Rafael Kalil entrevista uma detenta durante a Caravana Liberdade de Expressão

Largo do Machado, horário do almoço. Toca o telefone, é Emanuele Landi, repórter da CNN em Espanhol. Diz que ficou a semana passada inteira atrás do contato do Marcelo Yuka. Aí viu que eu tinha feito uma entrevista com ele aqui no fazendomedia.com e tentou a sorte comigo. Conseguiu. Passo o contato. Ele quer marcar uma entrevista para falar, sobretuto, a respeito dos shows realizados nos presídios. O Yuka é, de fato, um grande ativista. Foi ele quem levou a Companhia Brasileira de Cinema Barato para a 52a. DP (Nova Iguaçu). E é ele quem ajuda o músico Rafael Kalil a tocar o projeto Caravana Liberdade de Expressão, que corre os cárceres do Rio de Janeiro com a banda O Golpe e convidados como BNegão. Apóiam o projeto o delegado de Polícia Civil Orlando Zaccone e a juíza Regina Rios. Sem mais, segue abaixo a entrevista com Rafael Kalil, que convida a todos para um show amanhã. Esse não será num presídio, e sim no Teatro Odisséia, na Lapa. O custo, 10 reais, será revertido para a Caravana. Ganha desconto de 20% quem chegar com um livro, que será doado para os presídios que possuem bibliotecas.

O que você mais ama na música?
O fato de poder me expressar com liberdade, criatividade e muitas vezes bom humor. Na realidade, não sei viver sem a música; comecei a estudar com 4 anos, mas me afastei na adolescência e tudo pareceu sem sentido, até que a música novamente tornou a fazer parte determinante da minha vida, e é ela que me leva a tudo desde então.

Por que resolveu tocar nos presídios?
Sempre achei que, como músico, tinha que prestar algum serviço social por meio do talento que tenho. Considero o microfone uma arma que precisa ser bem manuseada. A coisa começou muito de repente, sem planejamento. Tive amigos presos e mortos em guerra de facções do Rio e a necessidade de fazer algo urgia e gritava dentro de mim, até que pensei no sistema observando um desses sinais da vida, até porque é um lugar aonde ninguém realmente dá atenção e que pra mim é uma peça-chave no nosso ciclo social; enxergo o preso como o principal elemento de transformação social, e que a interferência positiva nas penitenciárias a longo prazo pode amenizar as coisas no nosso contexto. Foi então que procurei o SEAP e uma semana depois começaram os eventos que estão rolando até hoje.

De modo geral, qual a reação dos detentos antes, durante e depois dos seus shows?
Antes sempre fica um certo receio, eles ficam meio travados pois esse tipo de evento quase nunca acontece (salvo exceções como a Penitenciária Talavera Bruce, que promove muitos eventos) e durante os shows eles vão se soltando até que acontece uma integração total entre nós, músicos, e eles. E no final transformamos um clima sufocado num alto astral incrível, e é sempre dessa maneira, não há como descrever muito bem em palavras, mas é uma das coisas mais emocionantes das quais já passei na minha vida.

Muito se fala das péssimas condições em que os presidiários são mantidos. O que você viu lá? Pode descrever exatamente como são essas condições?
Nenhuma novidade. Tuberculose, HIV, ratos, baratas, superlotação, falta de água potável, material de higiêne básico (absorvente para as mulheres, pasta de dente, sabonete, etc...), falta de assistência em todos os sentidos e outras coisas que todos sabem e não vale a pena ser citado.

Existem muitas mitificações a respeito do cárcere e da população que o ocupa. Daquilo que você encontrou lá dentro, o que poderia dizer que é verdadeiro e o que é falso?
Ah, sim, a coisa de que todo mundo é estuprado é mentira. A coisa de que os caras são uns bichos... Pô, levamos mulheres no nosso grupo e sempre a massa carcerária nos respeitou e muito. Não é um lugar com animais, mas sim com pessoas, a maioria analfabetos e pessoas não violentas que caíram lá por causa de algumas trouxas ou porque "rodaram" num assalto ou algo do tipo.

Durante esse primeiro ano da Caravana, você descobriu que 95% da população carcerária é de pobres ou muito pobres; 60% são pardos ou negros e 80% reincidem. Na sua opinião, o que leva a essa realidade? E o que fazer para modificá-la?
Primeiro, quanto à reincidência, o maior problema é a falta de acompanhamento no regresso do preso, o que não existe, nem acesso à educação e trabalho para todos. E vou mais alam: já acompanhei casos de pessoas que queriam largar o crime, mas não tiveram oportunidade aqui fora, se desesperaram pela falta de dinheiro, comida, respeito e etc. e voltaram lá pra dentro.

A coisa dos negros e dos pobres só comprova a tese de criminalização da pobreza; qualquer desvio de conduta para afro-descendentes e pobre é cadeia na certa. Vejo poucos brancos, mas existem, porém nunca vi um classe média lá dentro, com exceção da Jorgina de Freitas (fraudadora do INSS). A maioria é de analfabetos funcionais e analfabetos, é muito difícil isso, porque essas pessoas vão todas voltar pra rua em alguns anos, sem nenhum horizonte, sem nada, e está na hora de fazermos diferente, pois usamos o mesmo método de séculos e vemos que não funciona. É hora de humanizar, cuidar do nosso povo, pois o nosso povo está lá dentro também.

A maioria está no crime porque nunca teve nada. E a TV e os outros meios de comunicação incentivam um consumo de bens inalcançável para a maioria. O, veja bem, imagina um menino que tem mais cinco irmãos e um pai trabalhador. O garoto passa fome quase todo dia, é humilhado na escola e na rua, apanha de polícia e ainda observa seu pai honesto trabalhando que nem uma mula sabendo que nunca vai ser ninguém; aí ele vê os ditos bandidos da sua área com o carro que querem ou moto, tênis de marca, andando de fuzil e ainda tem a perspectiva de ganhar tipo 300 reais por semana só pra ficar de monitor com radinho na boca de fumo. Pô, ele vai ganhar mais que o pai... Garotos como esse existem diversos e vêem seus pais honestos e acham que não vale a pena, porque o herói verdadeiro (o honesto) não tem recompensas nem perspectiva, apenas porrada. Aí ele pensa se quer viver pouco como um rei ou muito como um zé... O que você faria no lugar dele?

Um comentário:

Maria Canela disse...

Jah é! Luz e paz no caminho.
Até!